Entrevista | “Entenda o que muda com a nova lei de transação tributária em Santa Catarina”

Gabriela Bittencourt Zanella, advogada tributarista

 

 

O estado de Santa Catarina publicou, recentemente, uma lei que estabelece a possibilidade de celebração de transações tributárias e não tributárias, com foco na regularização de débitos inscritos em dívida ativa até 31 de dezembro de 2020.

A nova norma, traz regras claras e objetivas para a negociação de ICMS, IPVA e ITCMD, bem como débitos não tributários de qualquer natureza, desde que inscritos em dívida ativa.

A Coluna conversou com a advogada Gabriela Bittencourt Zanella, sócia do Núcleo Tributário e Aduaneiro da Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados, que é especialista em Direito Tributário, para saber o que muda com a nova lei de transação tributária em Santa Catarina. Confira:

 

Pelo Estado – Em linhas gerais, o que a nova Lei nº 19.398, publicada em 5 de agosto de 2025, permite transacionar no Estado?

Gabriela Bittencourt Zanella – A lei criou um regime permanente para acordos envolvendo créditos estaduais. Ela abrange (i) créditos tributários de ICMS, IPVA e ITCMD, (ii) créditos não tributários (como contribuições, indenizações e multas) e (iii) outros créditos definidos em regulamentação. O “crédito” considerado é o valor consolidado (principal, multas, juros e encargos). Já os créditos tributários elegíveis precisam estar inscritos em dívida ativa até 31 de dezembro de 2020 e se enquadrar como irrecuperáveis ou de difícil recuperação, de pequeno valor (até 40 salários mínimos) ou ligados a controvérsia jurídica relevante e disseminada; os não tributários contam se estiverem consolidados na data da publicação da lei.

 

Pelo Estado – Quem governa esse processo e por quais vias o contribuinte pode aderir?

Gabriela Bittencourt Zanella – A governança é do Comitê Gestor de Transação Tributária e Não Tributária Estadual, composto por 4 representantes da PGE e 4 da DIAT/SEF, presidido pelo Procurador-Geral do Estado. O Comitê fixa critérios (como garantias, percentuais de redução, valor mínimo de parcela) e pode instituir comissão técnica permanente. A transação acontece por proposta individual (restrita ao capítulo de créditos irrecuperáveis/difícil recuperação) ou por adesão a edital, solicitado por meio eletrônico.

 

Pelo Estado – Quais são os benefícios econômicos possíveis?

Gabriela Bittencourt Zanella – A lei autoriza: redução de até 70% para pessoa natural, ME e EPP, e de até 65% para os demais, sem atingir o principal; parcelamento em até 145 parcelas (ME/EPP) ou 120 (demais); formas especiais de pagamento (diferimento/moratória) com prazo máximo de 60 meses; flexibilização/ substituição de garantias; e compensação com precatórios próprios ou de terceiros até o limite de 75% da dívida consolidada.

 

Pelo Estado – E como ficam depósitos judiciais e penhoras?

Gabriela Bittencourt Zanella – A lei permite que valores já depositados ou penhorados, relativos aos débitos incluídos, sejam considerados no termo para abatimento do “valor ao final transacionado”. Pela leitura do texto, entendo que essa dedução ocorreria após a aplicação dos descontos, o que evitaria sobreposição de pagamentos. Caso essa interpretação prevaleça, o mecanismo tende a otimizar o uso de garantias já existentes, liberar recursos imobilizados e gerar alívio imediato de caixa, sem comprometer a segurança jurídica.

 

Pelo Estado – Em quais hipóteses os créditos são tratados como “irrecuperáveis ou de difícil recuperação”?

Gabriela Bittencourt Zanella – A lei lista critérios objetivos (insucesso de cobrança, tempo de inscrição, capacidade contributiva, custos, suficiência de garantias etc.) e presume essa condição quando: (i) a inscrição em dívida ativa tem mais de 10 anos e não há garantia/suspensão; (ii) a exigibilidade está suspensa judicialmente há mais de 10 anos; ou (iii) o titular é PJ com situação especial no CNPJ como “em recuperação judicial”, “liquidação”, “baixado”, “cancelado” etc.

 

Pelo Estado – Há tratamento diferenciado para empresas em crise?

Gabriela Bittencourt Zanella – Sim. Nas hipóteses de titular é pessoa jurídica com situação especial no CNPJ como “em recuperação judicial”, “liquidação”, “baixado” ou “cancelado”, o Comitê poderá conceder redução de até 100% dos juros de mora e de até 50% do saldo remanescente depois dessa redução, sempre sem atingir o principal.

 

Pelo Estado – Quais são as principais vedações? Quem não entra?

Gabriela Bittencourt Zanella – Ficam de fora, entre outros: créditos não inscritos (salvo os não tributários), débitos já abarcados por programas/parcelamentos especiais, créditos já transacionados, casos ligados a fraude, débitos integralmente garantidos com decisão final favorável ao Estado, PRODEC, e ICMS de optantes do Simples (salvo exceções por convênio ou norma compatível). Também não se admite transação com devedor em inadimplência sistemática de ICMS (podendo alcançar o devedor contumaz) ou contribuinte cuja transação foi rescindida nos últimos 5 anos. Esse período de quarentena é mais severo do que o parâmetro federal — no âmbito da União, o intervalo é de 2 anos — e tende a restringir a reentrada de empresas que, após ajustes internos, poderiam retornar com melhor governança e maior capacidade de adimplência. Uma calibragem desse prazo aumentaria a efetividade do instrumento sem reduzir a segurança do sistema.

 

Pelo Estado – Quais compromissos o contribuinte assume ao aderir?

Gabriela Bittencourt Zanella – Além de confessar os débitos, a lei exige, entre outros, renúncia às ações e recursos sobre a matéria transacionada (com pedido de extinção com mérito), peticionar nos processos para informar o ajuste e manter a regularidade dos tributos vincendos estaduais.

 

Pelo Estado – A Administração é obrigada a aceitar a transação?

Gabriela Bittencourt Zanella – Não. A lei submete a celebração ao juízo de conveniência e oportunidade da Administração Tributária; não se trata de direito subjetivo do contribuinte.

 

Pelo Estado – Em que situações a transação pode ser rescindida?

Gabriela Bittencourt Zanella – Entre outras, pelo inadimplemento de 3 parcelas (seguidas ou não) ou pelo decurso de 90 dias após o vencimento da última, além do descumprimento de condições, ocultação patrimonial, falência, e questionamento judicial sobre a matéria transacionada. A rescisão afasta os benefícios, recompõe o saldo (com multas e juros) e retoma a cobrança com execução de garantias.

 

Pelo Estado – Na prática, por onde as empresas devem começar?

Gabriela Bittencourt Zanella – O ponto de partida é transformar o tema em projeto, com diagnóstico, lastro documental e cronograma. Primeiro, elabore um mapa completo do passivo: identifique as inscrições por natureza do crédito, data e situação processual, classifique a elegibilidade em cada hipótese prevista na lei e avalie riscos e prioridades. Em seguida, prepare a base de sustentação: consolide documentos de capacidade de pagamento, garantias, depósitos e penhoras já existentes, além de eventuais precatórios próprios ou de terceiros; a partir daí, simule cenários de adesão, parcelamento e compensação, comparando impacto de caixa e custo financeiro com a alternativa de litigar. Por fim, organize a execução com governança: institua um fluxo interno para manter tributos correntes adimplidos, defina responsáveis por petições e comunicações aos processos, e mantenha monitoramento ativo dos editais do Comitê para agir no momento certo. Quem chega a uma mesa de negociação com mapa, documentos e simulações pode capturar melhores condições.

 

Pelo Estado – Qual é a sua leitura estratégica sobre o alcance da lei catarinense?

Gabriela Bittencourt Zanella – A lei representa um avanço institucional, em sintonia com o art. 171 do CTN, ao combinar percentuais competitivos com ferramentas de gestão (parcelamentos mais longos, compensação com precatórios e regramento de garantias). O recorte temporal, limitando a transação para inscrições até 31/12/2020, e o rol de vedações tendem a restringir o alcance imediato. A efetividade dependerá do desenho regulatório: editais bem calibrados por segmento, critérios objetivos de elegibilidade e de capacidade de pagamento e uma governança que entregue previsibilidade, transparência e escala. Com coerência nesses vetores, o instrumento tem potencial para destravar passivos relevantes e reduzir litigiosidade sem comprometer a arrecadação.

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